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Ah ok

O sítio onde me beijas -aqui, no ombro esquerdo ainda não dói beija-me outra vez

domingo, outubro 08, 2006

prologo para algo feliz

Naquele quarto de hospital, os dias eram invariavelmente frios. O ar parecia mais pálido. Parecia secar lentamente o mundo.
As horas iam congelando na pele de Eduardo. Era a passagem do tempo a vagarar. Era a passagem do tempo que embrutecia tudo
(sobretudo a pele)
e o vento entrava pelos pequenos buracos do estore. Entrava pelos ciprestes robustos e curvados a tentarem manter-se. Sempre a tentarem manter-se.
Eduardo sabia que fora da janela estavam ciprestes e, ultimamente, sabia muitas coisas. Como sabia que os ciprestes se iam manter por longos meses.
Sabia também que os seus lábios se iam apagando e que a pele não ia aguentar.
No silêncio daquele quarto, havia a certeza do tempo das coisas. De certa maneira, naquele quarto transparente
(via-se qualquer coisa através das paredes)
o finito era mais tangível. A mortalidade era mais real.
-Eu sinto o seu cheiro. Ele vem aí.
Diria Eduardo se o ar não lhe escapasse. Os seus cabelos não eram grisalhos e na sua face não existiam rugas.
(apenas palidez)
No entanto, era como se agora existissem. Como se, na última hora, o tempo tivesse acelerado
(ou o oposto)
e as rugas tivessem brotado, não na pele real, mas na outra. A pele mais honesta. Uma superficie que não é deturpada pela idade, pela visão. Por cremes ou pela sua ausência.
Rugas que eram memórias inventadas à força. Acontecimentos de ontem que foram esquecidos e lembrados e agora velhas memórias.
Se o ar não lhe escapasse, Eduardo diria,
-Está tudo bem comigo.
e seria verdade. Se calhar,
sorriria.
Pelas transparentes paredes, Eduardo consegue ouvi-lo e adivinha a sua face. Pálida como o ar onde existe. Como o ar que cria.
Na sua voz engrossada, morta, destruída existe a sabedoria.
-Eduardo, estou aqui. Estou à tua espera.
e o corpo quase vazio deitado na cama,
aquecia. Aquecia e lembrava-se da sua avó a dizer
-Eduardinho
com tamanha ternura. Lembrava-se da sopa que lhe fazia. Lembrava-se da sopa que lhe fizera no dia anterior.
Assim, a pele ia-se tornando pálida e o tempo acabando.