Link

Ah ok

O sítio onde me beijas -aqui, no ombro esquerdo ainda não dói beija-me outra vez

quinta-feira, setembro 21, 2006

Quando a brisa salgada nos toca a pele (uma completa revisão do "febre de sábado à noite. Completa mesmo, até o final é diferente)

No ar estava um frio cortante. As pontas dos meus dedos estavam geladas e a ponta do meu nariz estava gelada. Mas o frio agradava-me. Tinha um cheiro específico a frio. Um cheiro, como qualquer outro ao fim de um tempo, agarrado a memórias. Memórias de outros invernos, de livros e de músicas.
Sorri apenas com o canto direito da boca.
Virei-me para trás e vi a casa. Emanava música electrónica distorcida pela distância e pelo ar frio. Apenas os graves sobreviviam a cheirar a eco.
Pelas janelas encontrava pessoas. Dezenas de pessoas, pessoas a mais. Alguns eram meus amigos e tinham invariavelmente um copo numa mão. Uma rapariga na restante.
Eu segurava também uma bebida, mas com as duas mãos. Um Vodka tónico, corantes que coravam uma cor imperceptível e gelo picado. Um chapéu de palito e papel na borda do copo.
À noite, a praia estava deserta.
Levantei-me com uma mão apoiada na areia e bebi o que restava no fundo do copo.
Na direcção da casa não se via agora a casa apenas Via-se também uma silhueta negra elegante que se aproximava. Com a mesma delicadeza de qualquer um que pisasse aquela areia.
Lentamente, a silhueta tornou-se a irmã mais nova do meu melhor amigo. Uma irmã mais nova que agora olhava o mar como se o visse. Como se a escuridão não impedisse os olhos. Como se a noite não escurecesse. Pensei:
-Acho que se chama Matilde.
-Matilde?
-Olá.
-Olá. Não devias estar lá dentro? O teu irmão pode ficar preocupado.
-O Jorge mandou-me sair de lá. Acha que sou demasiado nova. Os pais dizem-nos que eu tenho de fazer o que me manda e esquecem-se que o Jorge é o Jorge. Como se ser mais velho fosse ser mais adulto.
-O Jorge está a tentar proteger-te. Ele esquece-se que com a tua idade nunca chegavamos a casa a tempo de ir dormir. Bebíamos e...bem, fazíamos tudo. Ele continua a fazê-lo
-Parece igual à de ontem. No entanto, tenho a distinta impressão que ontem era morena.
-Quê?
-A rapariga que o Jorge tem na mão que não segura o copo.
-ah.
-E a Rita? Não pôde vir?
Todos os pensamentos que me têm invadido nos últimos dias fizeram-me arrepiar.
-Ela acabou comigo a semana passada.-Oh. Desculpa
Sorri um sorriso forçado tentando que ela percebesse que não fazia mal. Talvez tenha parecido apenas um sorriso aparvalhado, mas ela sorriu comigo. Sorriu e ainda com o sorriso nos lábios disse
-Queres ir nadar? Este mar é fantástico à noite.
-Parece ser. Vamos.
Entrámos na água tão rápido quanto os tecidos ensopados permitiam. Naquela noite
(desconfio que apenas naquela noite)
o mar estava fantástico.
***
Na noite seguinte telefonei-lhe. O mar tinha-me deixado constipado e a minha voz estava manhosa.
-Matilde?
-Oh, ficaste constipado. Desculpa, a água costuma estar mais quente...e eu normalmente vou de bikini.
-A água estava perfeita, não te preocupes. Queria perguntar-te se tens planos para esta noite?
-Nada de especial. Ia jantar com o Jorge. Tinhas pensado em algo?
-Tinha pensado que gostava de jantar contigo hoje.
-Eu também gostava. O que é que lhe digo?
-Dizes que vais estudar para casa de umas amigas.
-Que original.
-Porquê alterar um clássico?
-Seria criminoso.
-Pois seria.
-Espera só um segundo.
Ouvia agora a voz dela acompanhada pela voz do meu amigo. A voz dele não se alterou, não se exaltou. Os meus lábios tinham um sorriso idiota na cara e algo me dizia que ia demorar até o perder.
-Onde é que te encontro?
-Estás a ver a porta de tua casa
-hum hum
-Abre-a e dirige-te para a escuridão.
-Não está assim tão escuro.
-Eu sei, mas pareceu-me algo poético de se dizer.
-Oh sim, isso é.
O meu carro estava poucos metros à frente da casa. Eu estava lá dentro e ela estava agora a dirigir-se a mim. A sorrir dentro de um vestido negro que mostrava as suas pernas.
- Achas que vou ter frio?
-Não me parece que tenhas.
Fomos a um restaurante no topo de uma encosta crispada. Com uma parede inteira de vidro mostrava a noite e o mar revolto que ao bater nas rochas se tornava espuma. A noite e as nuvens tinham uma paleta de cores impressionante na escuridão.
O empregado tinha a pele pálida e vestia de preto. A sua voz parecia sair do queixo subido que comprimia os lábios.
-Dois risottos com salmão.
-hum
Ela estava especialmente bonita nessa noite. A sua pele macia mostrava a sua tenra idade que a tornava morna. Os seus olhos não estavam maquilhados e os seus lábios não estavam pintados, no entanto pareciam estar. Ela tinha uma cara colorida: de maçãs do rosto roasadas e lábios encarnados
(não encarnados demais)
-Está a tirar alguma faculdade?
-Eu estou no liceu ainda.
-Pois. Claro. Tinha-me esquecido.
-Estou em humanidades. Gostava de poder tirar letras.
-Para seres professora?
-Se tiver que ser. Mas o objectivo inicial é escrever romances. Contos.
-Deve ser porreiro
-Eu gostava.
Quando já não havia risotto nos nossos pratos e as horas avançavam urgentes paguei e dei uma gorjeta ao pálido empregado.
Quando atravessámos a porta vidrada do restaurante puz o meu braço sobre os ombros dela. Os ombros macios e apeteciveis.
Quando voltámos, a casa dela estava altamente populada.
-Ele deve ter pensado que chegavas mais tarde.
-Pois. Deve.
-Não te preocupes tanto. Ele vai-se cansar um dia.
-Mais tarde ou mais cedo.
-Vem dançar comigo.
-E se ele nos vê?
-Ele proibiu-te de dançar com alguém?
-Na verdade, proibiu-me de dançar com toda a gente.
-Pois. Então rezemos para que ele não te veja.
-É Façamos isso.
Entrámos pela porta e eu agarrei a sua mão com a minha.
Sem querer, sorri.
Troxe-a para um dos cantos da sala, onde talvez não chamássemos à atenção. Encostado ao vidro, enlacei-a delicadamente com os meus braços. Não sei se dançávamos, o movimento era muito suave, quase inexistente. A dança era talvez apenas um pretexto para estarmos abraçados. Na altura em que precisavamos de pretextos.
No entanto, nenhum pretexto era suficiente para dançarmos a noite toda. Dançámos até que todos os que nos davam cobertura desapareceram e já ninguém habitava a sala.
Apenas o silêncio e depois ela.
-Estou muito cansada. As minhas pernas já me estão a falhar.
-As minhas também.
-Eu não te quero mandar embora. Acredita em mim.
-Eu acredito em ti.
-Mas o meu irmão...
-Eu acredito em ti e percebo.
-Eu não te quero mesmo mandar embora
E a questão assaltou a minha cabeça: Quão difícil seria dar um beijo a sorrir.
-adeus
e beijamo-nos outra vez antes de eu ir. Sentei-me no carro e fiquei alguns momentos a olhar para a porta iluminada. O mundo estava na escuridão, porém, a porta estava iluminada.
Até que se apagou.
Ainda assim continuei a olhar para a porta. Talvez apenas por já lá ter os olhos. Talvez apenas por hábito. Talvez por aquela paisagem ser incrivelmente bonita quando se está a ouvir Mogwai.
(Mas que paisagem é que não é bonita quando se está a ouvir Mogwai.)
E enquanto o cd avançava no leitor e o “I know you are but what am I” se tornava “Stop coming to my house” a luz do quarto dela acendeu-se. Em poucos momentos a janela foi aberta e as cortinas afastadas.
-Ainda aí estás.
-Pois é.
-Tinha uma coisa para te dizer.
-Diz.
-“Os teus olhos são peixes verdes”
-E os teus?
-Os meus também.
-É bom saber.
-Ainda bem.
-Então adeus.
-É. Adeus.
-Desta vez é mesmo.
-Acho que sim.
E ao som de Mogwai a paisagem foi mudando.

***
Acordei mal o sol encontrou os céus e transformou o ar numa lente laranja. Uma lente que nos engana sempre. Que faz com que o azul pareça arroxeado e o verde amarelado. Uma lente que mostra quão subjectivas são as cores. Que são apenas o aspecto da lus quotidiana.
Agora penso que acordei no carro. Lembro-me de me deitar em casa porém acordar no carro. Não consigo relatar de uma maneira mais filedigna os acontecimentos. Acho que perdi certas memórias. Os acontecimentos parecem agora pedaços de um sonho.
Tirando as memórias com ela.
Sentei-me no banco da frente do carro
(ou na cama)
à espera que o tempo passasse. À espera que 6.52 da manhã se tornassem 9.30. Ainda esperei um tempo, eu sou muito bom a esperar.
Mas não esperei muito
-Bom dia?
-Jorge?
Onde é que estava com a cabeça?.
-Sim, claro.
-Era para saber se hoje vens tu a minha casa ou vou eu a tua.
-Tu tinhas dito que era em tua.
-Sim sim, era só a confirmar.
-Está confirmado.
-Pronto. Até lá.
-Até
Onde é que estava com a cabeça?
***
Eu e o Jorge passámos a tarde em minha casa a estudar afincadamente. Afincadamente até ele se aborrecer e aí o estudo tornou-se esquecido. Um acordo não dito entre nós que já não se podia falar de Nabokov ou de literatura clássica russa no geral.
Ele falava da Sonia e da Lola e de outras cujos nomes não me lembro.
Falava dos seus lábios e dos seus cabelos soltos
(às vezes atados ou entrelaçados)
até ser tarde e ele dizer
-Tenho de me arranjar para hoje à noite.
E a mim sempre me escapou o que é que um homem pode fazer para se arranjar. Porque, no fundo, basta desodorisante.
(ou se falarmos do James Dean, John Travolta, Elvis Presley e companheiros,
um pente)
-Queres que te leve a casa?
-Isso era muito porreiro. Não tenho grande vontade de gastar dinheiro num taxi. Não te importas?
-De todo.
Em poucos minitos alcançámos o nosso destino.
-Entras?
-Sim, claro.
-Abanca aí na sala. Eu vou arranjar-me mas daqui a pouco estão a chegar pessoas.
-Vais fazer uma festa?
-Todos os dias, meu.
Após ele ter estado ausente por um tempo que me aparecia como interminável, fui para a mesa no canto da sala. Lá, estava o computador portátil no qual o Dj normalmente passava a música nas festas. Seleccionei tudo o que havia de New Order e puz a tocar.
Da porta onde o Jorge tinha desparecido aparecia agora ela. Caminhando sobre uns pequenos sapatos vermelhos que condiziam com os seus lábios clássicos. Caminhou até à mesa onde eu estava e abeirou-se para ver o que eu fazia.
-O estudo foi bom?
-Come si come sa. Pode-se dizer que foi bom enquanto foi.
-Isso já é alguma coisa...
Descolou-se da mesa e fixou os seus olhos em mim. Os seus olhos que, com a ajuda das sobrancelhas comprimidas, se tornavam sedutores.
Deu uma pirueta no centro da sala e disse
-Eu adoro New Order.
Desta vez, fui eu que larquei o computador e aproximei-me dela.
-Eu também
de mãos nos bolsos.
E lentamente fomo-nos afastanto. O perigo do irmão dela aparecer era demasiado para arriscarmos.
***
Estacionei o carro no passeio oposto à casa dela. A escuridão ainda escondia as coisas. Tirando as nuvens. As nuvens estavam rosadas no céu negro. Quando os meus pés tocaram a estrada sentiram as ervas que nasciam no alcatrão. As folhas secas que o vento trouxe das dunas que antecediam a praia.
Deviam ser quatro da manhã.
Apanhei uma pequena pedra que um dia foi parte da estrada e atingi o vidro dela. Tinha-o visto em filmes
(em quase todos os filmes na verdade.)
e mesmo sendo um clichê parecia funcionar sempre. Pelo menos é o que parecia nos filmes.
Nada aconteceu.
Atirei outra pedra e depois outra.
Ainda nada.
Tomei uma nota mental de nunca mais voltar a fazer coisas que apareciam naqueles filmes e toquei à porta. Ela apareceu num pijama rosado que lhe ficava largo.
-Estás doido! Tens mesmo o desejo que o meu irmão me tormente lentamente até à...
Interrompi-a antes que disesse algo que se iria arrepender.
-Eu tentei atirar pedrinhas à tua janela mas tu não ouviste.
-Ouvi pois! Pregaste-me um susto de morte! Não fazia ideia o que era!
-Desculpa. Mas agora nada disso importa. Nem o teu irmão nem mais ninguém.
-Hã? Como assim?
-Vem comigo para casa.
-Para tua casa? Estás a falar a sério?
-Para minha casa. Eu tenho uma pequena vivenda nas redondezas de elvas e uma série de terrenos agrículas que o meu avô me deixou. Assim poderemos estar juntos, sem estarmos sempre a elaborar elaboradas mentiras.
-E o meu irmão?
-Esquece o teu irmão! Vamos ser loucos de felicidade!
Rapidamente o seu olhar confuso tornou-se alegre e excitado.
-Vamos! Vamos ser loucos de felicidade!
Corremos para o carro e ela parou.
-Vai ligando o carro, tenho que ir buscar roupa.
Dentro do carro, o rádio ainda tocava Mogwai.
***
As janelas do carro mostravam os campos de trigo dourado completamente desertos. Apenas o brilho que emanavam, como se tivessemos a viajar pelas estradas de uma estrela. Ao longe iam-se vendo cercas e pequenas vivendas e animais. Algumas vacas, mas sobretudo ovelhas.
Ela dormia com a cabeça encostada na janela. Os seus lábios soltavam-se um do outro e voltavam a tocar-se numa repetição sem fim. Os cabelos estavam soltos e loucos por ela não os ter penteado.
Eu preferia assim.
Escorregavam para os olhos e os lábios e tocavam ainda o queixo delicadamente.
Eu endireitava-me e preocupava-me em manter os olhos na estrada. Não me podia desconcentrar, descuidar. Logo agora que estava tão perto de casa.
No leitor de Cd’s ouvia os The Smiths cantarem “If a double decked bus crashes into us/ to die by your side is such a heavenly way to die”
E eu sorria. Mesmo assim era preferível ter atenção à estrada.
***
Quando chegámos abrandei o carro e estacionei-o sob um velho chorão.
Era tão bom estar de volta a casa. Tantas memórias que lá residiam, dos meus pais e avós. Da quando eu era pequeno e percorria os terrenos com a minha bicicleta. Tantas vezes corri por entre as macieiras e nadei no lago.
Beijei-a suavemente para que ela acordasse. Murmurei
-Matilde
e parecia o som que o vento faz quando roça no velho chorão.
-Matilde
-hum?
-Chegámos a minha casa. Chegámos a minha casa e agora tudon vai ser perfeito.
-hum.
-Vá lá! Levanta-te! Acorda e inala o ar fresco e a brisa que vem do lago.
-Isto tem um lago?
-Tem. Não te tinha dito?
-Não.
-Anda, vamos por as tuas malas dentro de casa.
-Estou com sono.
-Enganaste-me bem. Anda dái! Temos tempo para dormir quando formos velhos.
-Depois podemos ir nadar?
-Não esperava eu outra coisa.
Ela abriu a porta e saiu aos tropeções.
Fomos pelo caminho de calçada coberto de folhas secas. Faltavam algumas das pedras e eu não me lembro de elas alguma vez lá terem estado.
A vivenda tinha dois andares e as paredes eram feitas de basalto. Apenas umas janelas de vidro poeirento e o telhado encarnado rompiam o negro da pedra.
E a porta. A enorme porta verde com a fechadura dourada.
Lentamente e com esforço consegui abri-la.
Fiz uma rápida visita guiada, mostrando a Matilde onde ficava a sala, cozinha, casa de banho e o nosso quarto. Ficava no segundo andar e tinha uma enorme cama no centro, um roupeiro imbutido na parede e um armário com vinyls que os meus pais me tinham deixado.
Ela arrumou as roupas e deixou-se cair sobre a cama.
-Dá-me 30 minutos. Só te peço 30 minutos.
-Ok. Eu vou vestir os calções de banho e vou para o lago.
-Eu vou lá ter.
***
Os meus pés sentiam os seixos húmidos que avisavam o ínicio do lago. A extensão de água começava num riacho que vinha de longe e que percorria centenas de quilómetros até acabar aqui. Neste enorme lago de água limpa e transparente e que reflectia na perfeição toda a luz do sol. Só com esse reflexo se podiam notar pequenas ondulações, erros na imagem perfeita do céu.
Ouvi um barulho nos arbustos atrás de mim.
-Nós temos uma coisa boa com a água, não temos?
Era ela, vestida já para nadar, com os cabelos agora domados, sobre os ombros.
-Temos pois. Na verdade, desconfio de todos os casais que não gostam de estar juntos dentro de água.
-Como te percebo.
-Queres ir nadar?
-Oh, Dejá vu!
Desta vez não corremos para dentro de água. Andámos, com medo de tropeçar nos seixos.
***
Quando o manto de água que cobria a nossa pele se tornou demasiado frio e o sol ameaçava ir-se, sáimos do lago. Subimos cuidadosamente os seixos e alcançámos a relva que rodeava a vivenda de basalto.
Deitámo-nos tão juntos quanto era possível.
Deitámo-nos e ficámos deitados até toda a água nos nossos corpos se evaporar e o sol ter desaparecido por completo.
Sussurei
-Espera aqui por mim, volto num segundo.
-Eu espero.
Levantei-me num movimento rápido e entrei a vivenda. O mais depressa que consegui voltei para junto dela.
Nos meus braços repousava uma viola.
-Sabes tocar?
-Sei, aprendi quando era miúdo. É como andar de bicicleta, nunca se esquece.
-É o que eles dizem.
-E eles hão de saber porque o dizem.
-Claro, senão não o diriam.
Passei os meus dedos levemente pelas cordas e comecei a afinar as cordas. Passaram uns minutos até todas as cordas soarem como deveriam e foi aí que os acordes começaram a acontecer. Entre os meus dedos e o braço da viola os acordes começaram a acontecer a ter alguma lógica. A minha voz também
-“Give me your love and I’ll give you the perfect love song”
Ela sentou-se na relva e começou a olhar para mim. Começou a olhar como quem está a ouvir e quer falar. Como quem quer dizer “adoro-te” e “obrigado” mas não o diz por ter medo de arruinar tudo.
-“with a divine Beatles bass line and a great old Beach Boys sound.”
E todos os acordes continuaram a acontecer.
Até a minha voz se silenciar e as cordas tornarem-se inertes. Até ela dizer
-Adoro-te. Obrigado.
Com uma voz que tremia. Com uma voz que tremia ela continuou a dizer
-Bem, para ser honesta, eu amo-te. Não fico magoada se me disseres que não me amas, apenas queria que soubesses. Eu queria que soubesses tudo. Eu queria tanto contar-te tudo...
-Matilde, tola, eu amo-te.
-Não me chames tola.
-Era tola no bom sentido.
-Não me voltes a chamar tola, por favor.
-Desculpa. Não voltarei.
Ela sorriu e tentou escondê-lo. Tentou guardar o sorriso dentro de ela, mas foi em vão.
-Fico contente por saber.
-Por saber o quê?
-Tentas envergonhar-me de propósito, não é verdade? Sabes bem do que estou a falar, não me tortures mais!
-És uma exagerada. Só queria saber se estávamos a pensar no mesmo, se estávamos no mesmo comprimento de onda. É triste que te incomode assim tanto falar sobre estas coisas!
-Mas incomoda-me. Não falemos mais, está bem?
-Claro, se preferires. Não preciso que me digas mais nada.
Beijei-a ali, na relva. Beijei-a no caminho até casa e na entrada de casa. Beijei-a pelas escadas acima e beijei-a no quarto e beijei-a na cama. Beijei-a enquanto a despia e enquanto ela me despia. Beijei-a quando os nossos corpos estavam nus e, por fim, ela beijou-me.
***
Acordei numa manhã tardia e quente. Com o sol a entrar completamente pelas janelas e pela porta aberta. Nos lençois permanecia ainda um calor humano, acolhedor. Um calor que me teria feito ficar na cama
(e talvez dormir mais umas curtas horas)
não fosse o lugar a meu lado estar vazio. Ainda com a forma das suas curvas marcada nos lençois. O socalco que o corpo de Matilde fazia nos lençois tornava-me melancólico. Irracionalmente melancólico, mas o que é que se pode fazer? As pessoas costumam ter razões escondidas nas suas memórias
(às vezes menos escondidas)
para as suas irracionalidades. Eu, claro, não sou excepção. As estranhas condições em que eu e a Rita acabámos não são únicas. Uma Inês qualquer-coisa
(é inamaginável o quão pouco importantes podem ser os apelidos)
rompeu comigo dentro de um avião que nos levava para uma viagem romantica.
(Canárias ou outras desse género)
o que tornou as coisas um bocado estranhas enquanto estivemos lá.
Onde é que estava?
A minha irracionalidade melancólica, pois. Na verdade não durou muito, em poucos segundos estava o corpo dela a passar pela porta luminosa. Alegre, demasiado alegre se isso for possível.
-Huhu, acordaste!
-Acho que sim.
-Estás aborrecido?
-Não, acho que es...
-Isso passa-te já.
-Ai passa?
-Passa pois! Eu tenho cds com best ofs relacionados com o meu humor no momento. O alegre tem Divine Comedy e algum Josh Rouse mais arrebitado. No entanto, o triste é um recuperador de humor! Com um bocado de Indie dos anos 90, uma dos Joy Division e...
(ela deixou o suspense a pairar no ar enquanto punha o cd na aparelhagem. Nesse momento admirei-a, por tentar tornar a realidade mais perfeita de um modo cinematográfico. Aquela perfeição hollywodesca de um bom clichê)
Monthy Phyton!
Pelas colunas saiu a voz de um deles
(Eu sei reconhecer o John Cleese e a lista acaba aí)
e eu percebi que ela tinha razão, aquilo passava-me já.
*
Fui em quem cozinhou sempre durante a nossa estadia naquela casa. Não por ela não insistir em fazê-lo. Pelo contrário, ela tinha as maneiras mais creativas de se oferecer para esse particular trabalho. Vestia o avental e relatava-me todos os elogios que foram tecidos ao “salmão em molho de maracujá da Matilde”
(a parte creativa era ela vestir o avental, apenas o avental.)
Fui eu quem cozinhou porque adorava a sua cara sonolenta
(eu começo a cozinhar extremamente cedo)
encostada ao armário dos talheres enquanto me tentava fazer companhia. As suas pernas nuas, sem cremes nem loções e os seus braços. Os seus braços pareciam ter sido esquecidos pelo tempo, pareciam novos demais. Uns braços de lolita presos àquele corpo de Matilde.
Naquele dia ela não me fez companhia. Estava na sala a falar ao telefone e a sua voz mudava de humor com os segundos que passavam.
Era o irmão dela. Era o Jorge e tinha descoberto tudo.
O plástico do telefone fez o som que os telefones fazem quando são pousados no sitio próprio e a voz dela era agora dirigida a mim.
-Vou voltar para casa.
O inevitável não foi evitado e eu secretamente esperava que pudesse ser. No entanto, é uma afirmação tão seca. “Vou voltar para casa”. Quase cruel. Quase. Ou então sou só eu, com as minhas irracionalidades racionais.
-Queres boleia?
-Acho que ele vem cá buscar-me.
-hum.
-Não me perguntas como é que ele descobriu sobre nós?
-Não me parece importante.
-Pois, talvez não seja.
Continuei a cozinhar e desta vez ela estava na cozinha. No entanto, sem a cara ensonada e as pernas pareciam-me ter um certo brilho acrescentado.
-Desculpa, não estou chateada contigo.
-Não te preocupes.
-Eu vou voltar. Sabes isso, não sabes?
-Agora sei. Fico feliz.
Ela sorriu com um sorriso entristecido e eu percebi que não a ia voltar a ver.